Considerações sobre religião e a cultura do hiperconsumo | Paulus Editora

Colunistas

Psicologia e Sociedade

27/10/2016

Considerações sobre religião e a cultura do hiperconsumo

Por Gustavo Trevisan

Percebe-se que o discurso religioso sofreu consideráveis transformações no contexto da atual cultura do consumo. As mutações culturais advindas da “pós-modernidade” não deixaram ilesas as manifestações religiosas populares, bem como seu novo modelo teológico. O paradigma religioso contemporâneo acompanha as atuais características sociais de relação Eu/outro, relacionadas ao imediatismo, superficialidade, obrigação do gozo e do prazer contínuo.

Não é difícil perceber que o ser humano se destitui da condição de sujeito, passando para a condição de objeto. O que faz dele objeto é justamente a impossibilidade de escapar deste ciclo produtivo, que tem como característica o movimento de oferecer para receber. As relações, tanto com Deus como com o outro, são marcadas pela barganha, de modo que eu espero receber na mesma medida que dou.

A nova era do capitalismo é condição preponderante para entendermos a condição atual do psiquismo humano e da sociedade. Pouco a pouco, o espírito de consumo conseguiu infiltrar-se até nas relações com a família e a religião, com a política e o sindicalismo, e, sobretudo, com a cultura.

Segundo Lipovetsky, ultrapassamos a era do consumo para a era do hiperconsumo. Neste quadro, verifica-se um grande e terrível paradoxo. O hiperconsumidor, de um lado, afirma ser um consumidor informado e “livre”, que vê seu leque de escolhas ampliar-se, que consulta portais e comparadores de preços, aproveita as grandes promoções, age sempre procurando otimizar a relação qualidade/preço. Do outro, os modos de vida, os prazeres e os gostos mostram-se cada vez mais sob dependência do sistema mercantil; portanto, tenho que ter para ser.

O hiperconsumidor não está mais apenas ávido de bem-estar material, preocupado com a funcionalidade e benefícios do produto; ele aparece como solicitante de conforto psíquico. O produto, para ser bom, é obrigado a causar sensações de bem-estar, felicidade e sabedoria.

A civilização consumista se caracteriza pelas aspirações de bem-estar e pela busca de uma vida melhor para cada indivíduo e os seus. Existe uma forte ideia de que se vive mais e melhor beneficiando-se de melhores condições materiais. O ascetismo cedeu lugar ao hedonismo.

As publicidades tendem a associar todo e qualquer produto ao gozo no aqui e agora. São criadas necessidades que impulsionam o indivíduo à dialética de ter para pertencer. O indivíduo é cercado pela parafernália de produtos dispostos a facilitar sua vida, e, ao mesmo tempo, pela promessa de dar com extrema rapidez o que sem o produto nunca foi possível. Em suma, a felicidade é agora o grande projeto de marketing.

Se o indivíduo adquire um produto, ele está em iguais condições com o outro que também adquiriu. A igualdade perpassa a condição de ter; em outras palavras, não existe a possibilidade de escapar desta avalanche: se o indivíduo não tem, ele está fora das normas, está desatualizado e desassociado à modernidade. A exclusão e a inclusão relacionam-se com a possibilidade de posse. Subjacente a isso, percebe-se a existência de um pedido latente de emancipação, sublinhando a igualdade de todos perante a lei, mas a cultura do consumo acentua a diferença.

O bem-estar, o prazer e o gozo imediato da sociedade contemporânea estão associados ao exercício contínuo de afastamento do desconforto e do sofrimento. O sofrimento é encarado como estranho ao humano, algo que precisa ser destruído imediatamente; não há espaço para o sofrimento onde reina a satisfação imediata. A subjetividade dá lugar à objetividade. O bem-estar é adquirido, e não mais construído respondendo às elaborações dos conflitos, mesmo porque também não há espaço para conflitos. Segundo Roudinesco, esta sociedade passou da era do confronto para a era da evitação.

Isto explica o motivo do aumento exponencial do uso das substâncias psicotrópicas. Receitados tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm o efeito de normalizar o comportamento e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar significação.

Daí uma concepção da norma e da patologia que repousa num princípio intangível: todo indivíduo tem o direito e, portanto, o dever de não mais manifestar sofrimento, de não mais se entusiasmar com o menor ideal que não seja o pacifismo ou o da moral humanitária. Em consequência disso, o ódio ao outro tornou-se sub-reptício, perverso, e ainda mais temível, por assumir a máscara da dedicação da vítima. Se o ódio pelo outro é, inicialmente, o ódio a si mesmo, ele repousa, como todo masoquismo, na negação imaginária da alteridade (Roudinesco, 2000, 9).

O hiperconsumo não permite prestar tempo para dar significado ao sofrimento. Quanto mais rápido o indivíduo se livra do sofrimento, mais ele está disposto a alimentar o consumismo. O próprio sofrimento se torna causa do hiperconsumo.

Não surpreende, portanto, que o sofrimento que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez etc.

Vale ressaltar que a angústia e os conflitos são inerentes ao ser humano: quanto mais se evitam e se recalcam tais sentimentos, mais eles se tornarão ferozes e tenderão a se manifestar de maneira disfarçada para limitar a liberdade e o direito de escolha do indivíduo. O sujeito passa a ser, portanto, presa fácil deste ciclo: buscar soluções rápidas e eficazes para não sofrer, e, como o sofrimento é inevitável, a busca ganha ainda mais força.

A construção dos relacionamentos também não escapa do imediatismo. Os indivíduos utilizam-se dos mesmos critérios de rapidez e superficialidade ao constituir relações com o externo. Na mesma rapidez com que se constrói também se dissolve, basta dar um clique para que o outro não faça mais parte da minha rede de relações.

Bauman inclusive sugere a alteração do termo relações sociais para ralações plugadas, ou seja, o contato é cada vez mais virtualizado, a instantaneidade dos acontecimentos trasborda os fatos e invade as relações humanas.

Sabemos que o sofrimento é inerente ao ser humano, e que, portanto, não pode ser eliminado, mas podemos dar sentido a esee sofrimento. Somente dessa forma pode-se escapar do ciclo (cf. Roudinesco, 2000).

 

 

nenhum comentário