Felicidade: reflexão para construir | Paulus Editora

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Psicologia e Sociedade

09/06/2017

Felicidade: reflexão para construir

Por Gustavo Trevisan

Do Oriente ao Ocidente, a felicidade sempre foi objeto de estudo. Na Grécia antiga, por volta de 2000 a.C., já com os pré-socráticos, o conceito de felicidade foi estudado e discutido.

Desde sempre, e ainda hoje, buscamos a felicidade “verdadeira”. Essa busca ganhou muita força com o advento do cristianismo, de modo que muitos de nós achamos que existe apenas uma maneira de sermos felizes. Mas nem sempre, ao longo da história, foi assim.

É preciso levar em conta que o conceito de felicidade ganha sentidos diferentes de acordo com o tempo histórico. Houve momentos em que as pessoas felizes eram aquelas que nasciam com dons e talentos especiais e os colocavam em prática. Portanto, a força, aptidões físicas e estéticas eram motivo de glória: os que as possuíam repousavam na certeza de que eram dotados de atributos concedidos. Isso os diferenciava dos demais, e por isso eram cultivados e admirados. Vale lembrar que o estereótipo grego de homens fortes, atletas de corpos torneados, é uma amostra desse conceito.

Após a tríade grega Sócrates, Platão e Aristóteles, pontos centrais do desenvolvimento do pensamento ocidental, começa-se a se discutir um novo conceito de felicidade. Embora ainda contaminada com a ideia dos talentos inatos, a felicidade começa a ser construída por outro tipo de atributos. As qualidades físicas dividem espaço com a liberdade, a democracia e o conhecimento. Perceba que as imagens que representam Sócrates, Platão e Aristóteles já não consistem aqui de homens musculosos, e sim com referência a posturas éticas e morais. A felicidade, portanto, tem mais relação com as virtudes do que com talentos. Um esboço de cristianismo já começa a ser criado, com algumas diferenças, claro.

O judaísmo trouxe consigo a ideia de uma felicidade atrelada a acontecimentos, não pura e simplesmente a um estado de espírito. A felicidade verdadeira estaria atrelada ao momento em que haveria a libertação da escravidão, um lugar e tempo em que todos poderiam usufruir das benesses da promessa e, para isso, da esperança, do “porvir”. A felicidade seria “trazida” e entregue para quem é de direito, aos escolhidos, e sempre representada na figura do Libertador.

Não muito distante, o cristianismo segue as mesmas ideias, mas com algumas diferenças e ramificações. Para o cristianismo primitivo, o que depois deu subsídio ao desenvolvimento da teologia católica, a verdadeira felicidade não está apenas em amar a Deus e ao próximo. Isso são meios, e não fim. A felicidade estaria em um ideal de mundo, não aqui, ao qual não pertencemos. A felicidade seria conquistada, e não dada; portanto, o sacrifício e a renúncia são pontes de travessia à verdadeira e única felicidade.

O mesmo cristianismo, na Idade Média, dá ainda mais peso a essa estrutura de pensamento: afinal, só há salvação na Igreja; fora dela, dor e sofrimento. O sacrifício e a renúncia ganham ainda maior sentido na esperança de um mundo melhor.

Uma cisão no pensamento cristão acontece após a Reforma Protestante, centrada nas pessoas de Martinho Lutero e João Calvino, século XVI. Agora o cristianismo passa a dar valor ao aqui e agora. É bem verdade que o mundo melhor seria o ideal de conquista, mas a ideia de sacrifício e renúncia perde força e dá lugar ao gozar da liberdade que já foi conquistada por Cristo. Claro que isso terá influência na conciliação do capitalismo e na ideia da prosperidade como benção e felicidade (Max Weber, 1905).

Paralelamente a isso, outras correntes filosóficas e religiosas contribuem com outros diferentes conceitos. As religiões orientais, por exemplo, que em geral acreditam na ideia do esvaziamento de si e na busca do equilíbrio entre os instintos e virtudes. A felicidade está na perfeição que só pode ser alcançada com o autoconhecimento e o controle dos impulsos.

Em meados do século XVIII e XIX, pensadores como Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud retomam o conceito de felicidade sem concepção do divino. A felicidade teria o mérito de dar sentido à existência e estaria presente na luta constante de todas as pulsões que nos determinam. Para muitos, uma visão pessimista do ser humano.

Para o existencialismo, a felicidade se contrapõe à ideia platônica e judaico-cristã. A felicidade consiste em autorresponsabilidade e no abandono do ideal (mundo melhor) em busca do real. A esperança, nesse sentido, seria a perpetuação do sofrimento, e não o contrário.

No século XXI, a felicidade tem relação direta com o consumo, ou seja, não a ganhamos, não a conquistamos, e muito menos a construímos: simplesmente a consumimos, por meio de barganha; a aparência precede a essência.

No entanto, há algo de diferente na contemporaneidade, um elemento do qual se modula de forma drasticamente oposta, comparado à incessante busca pela felicidade ao longo da história. A felicidade está no hedonismo irracional, sem filtro de reflexão, e principalmente na Extrospecção.

Perguntas como “Como posso ser feliz?”, “O que é felicidade?”, “O que preciso ser para ser feliz?” deram espaço para: “O que preciso ter para ser feliz?”.

Mas não é só isso…

A dúvida, elemento básico de todo questionamento, foi substituída pela resposta.

Não importa em que momento histórico estivemos: desde sempre, a reflexão e o questionamento trouxeram ao homem possibilidade de olhar para si na busca de respostas e, mais do que isso, a reflexão trouxe o autoconhecimento e a capacidade de se situar no mundo enquanto autores. Ao que vemos, pelo menos numa forma mais superficial e menos abrangente, a contemporaneidade não se interessa por tais movimentos, primeiramente porque isso demanda tempo, e não o temos: queremos e precisamos de velocidade; segundo, porque compramos o que nos deixa felizes na prateleira; por último, não menos importante, a virtualização do real, dando lugar, como consequência, à aparência, em substituição covarde da essência.

Isso talvez explicaria por que nunca sofremos tanto em toda a história?

Onde estaria o “erro”? Na concepção errada de felicidade ou na falta de compromisso com a pergunta: “O que é felicidade?”.

Pensemos…

 

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