A “ficção” de Arthur Clarke | Paulus Editora

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04/04/2022

A “ficção” de Arthur Clarke

Por Ednoel Amorim

Arthur Clarke, considerado um dos maiores autores ficcionais do século XX, é o autor de 2001: uma odisseia no espaço. Além dessa, ele escreveu outras obras igualmente interessantes e famosas. Em sua ficção intitulada “O Fim da Infância” sugere que os seres humanos, em um dado momento da trama, receberam um presente dos “Senhores Supremos”. O presente se mostra extremamente útil principalmente para os historiadores, pois o notável aparelho é semelhante a um receptor de TV, porém possui uma capacidade muito especial uma vez que permite aos seres humanos conhecerem detalhes significativos do seu passado. Segundo a ficção isso ocasionou o fim de todas as religiões, uma vez que ficou desvelada a verdade por trás de histórias seculares.

Ora, se esse instrumento poderoso existisse na realidade deveríamos utilizá-lo imediatamente, porém uma vez que ele não existe de fato, isso não significa que ficamos desprovidos de recursos, pois continuamos a ter um dos maiores recursos já criados: a nossa inteligência. Precisamente recorrendo à inteligência humana que Arthur Clarke declarará ser óbvio desde sempre para qualquer mente racional, “[…] que todas as escrituras religiosas do mundo não poderiam ser verdadeiras” (O fim da Infância, p. 97).

Pela desfortuna de não ser possível criar o tal instrumento apocalíptico continuamos a conviver com crenças várias. Todas se arrogando o caráter de religião, todas se considerando principais e verdadeiras; no entanto, na ficção de Clarke existe algo que foi apresentado como uma consequência direta das descobertas acerca do passado, ou seja, logo após do descrédito para com as religiões e a conquista do ser humano de uma liberdade definitiva e intocável, algo que não era possível. O humano estava muito apegado a normas, costumes, crenças, valores etc., agora o que lhe resta é o fenômeno do tédio. O que fará? Esperar a morte pode ser uma opção. Os mais audaciosos talvez queiram antecipá-la ou, melhor dizendo, já a antecipam.

O sabor da liberdade durou pouco para ficar amargo, o dos prazeres do momento presente rapidamente perdeu o gosto. O mais interessante é que a sociedade contemporânea não possui um instrumento que permita voltar ao passado e o mais provável é que nunca venha a tê-lo. Contudo, o fenômeno da queda dos dogmas e messias já pode ser sentido em todas as instâncias, classes, regiões, faixas etárias etc. O que Clarke representou em sua obra com o auxílio de um instrumento técnico-ficcional, o ser humano comum de hoje realizou com o auxílio de bem pouco. Utilizou-se apenas do mergulho profundo no lago do eu, num salto sem precedentes. A sociedade do espetáculo, como que em um minuto se converteu em sociedade do click, do post e do story, para no minuto seguinte resultar em cansaço, estresse, desilusão, ansiedade, mornidão, desencanto… O que não foi capaz de perceber ainda é que o caminho percorrido leva a um só lugar: tédio.

O ser humano que antes sonhou com um pedaço de pão – sustento para os seus -, paz, um pedaço de chão para viver; hoje sonha, alegra-se ou deprime-se com sua maior ou menor capacidade de likes, followers, vews. É o bebê chorão da contemporaneidade criticando os sonhos do passado para colocar no lugar novas utopias. O que está prestes a descobrir é que o tédio é o “[…] inimigo supremo de todas as Utopias” (O fim da infância, p. 98). O que logo o tédio leva de nós é a alegria, o calor de viver: o sentido. Portanto, no tédio vivemos sem sonhos e sem eles não podemos criar um propósito forte e coerente, nos resta ser mornos.

Fica a pergunta: Será que no fim seremos todos vomitados? (cf. Ap. 3,16).

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