O mundo vive uma crise litúrgica | Paulus Editora

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Igreja e Sociedade

05/02/2014

O mundo vive uma crise litúrgica

Por Valdecir Luiz Cordeiro

O Movimento Litúrgico, na primeira metade do século XX, ajudou a preparar o terreno para a realização do Concílio Vaticano II. O movimento contribuiu para a superação, ainda em curso, da crise litúrgica pela qual passava o cristianismo católico. Atualmente, já se fala também da crise litúrgica pela qual atravessam os sistemas econômicos e políticos vigentes.

Liturgia é celebração. Antes de ser apropriada pela religião, a palavra era aplicada às cerimônia públicas da democracia grega. Para o teólogo jesuíta, Francisco Taborda, celebração é festa, feita de três elementos: o fato celebrado-comemorado, a expressão significativa (ritos, movimentos, falas, símbolos, músicas) e a intercomunhão solidária (a amizade, a alegria, a cumplicidade etc.). Tendo um bom motivo, as pessoas fazem festa, e os laços interpessoais tendem a crescer.

Vivemos, pois, uma crise litúrgica no mundo, e não somente no interior das religiões. O sistema organiza suas liturgias, mas claramente as cerimônias públicas não refletem o que se vive na sociedade. O espírito lúdico, o ideal da democracia e o sentido social da economia são celebrados quase sempre em cerimônias vazias.

A crise litúrgica no esporte fica evidente nos grandes eventos esportivos, como as Olimpíadas, a Copa do Mundo e os campeonatos nacionais. Estas grandes liturgias deveriam celebrar o espírito lúdico do ser humano. Mas são instrumentalizadas pelos interesses econômicos que falseiam o seu sentido. A FIFA faturou US$ 2,145 bilhões com a Copa da África do Sul, em plena crise econômica mundial, o maior lucro já obtido pela entidade em todos os tempos. E um fabricante de plásticos ficou milionário vendendo vuvuzelas, de uma forma bastante oportunista.

A crise litúrgica acomete a política. O presidente dos Estados Unidos exalta a democracia em seu discurso de início do ano, mas mal esconde a sujeição do sistema político aos interesses dos detentores do dinheiro grosso. O político de esquerda faz um discurso revolucionário, mas não pode admitir em público que não defenderá os trabalhadores por medo de virar a mesa dos banqueiros e grandes proprietários. Tudo acaba se tornando uma cerimônia vazia, com aplausos falsos e sem alegria, de gente escalada para este ofício, uma tristeza.

A crise litúrgica acomete a economia. A crise de 2008 foi um balde de água fria nas liturgias das agências de classificação de risco e nos sermões dos “jornalistas de economia”, que exaltavam a pujança das bolsas e do mercado imobiliário, a despeito dos sinais de morte gerados por uma economia sem coração.

Mas há também, no campo economia, o inverso do falseamento da realidade. Os sacerdotes dos mercados, que proferem seus sermões na grande mídia, invertem o sentido dos fatos mediante cerimônias capazes de estancar políticas econômicas de inclusão social. São capazes de profetizar que um país vai afundar em pleno emprego, e que é uma heresia imperdoável o governo agir no sentido de reduzir os juros, que no Brasil são os mais altos do mundo, perdendo apenas para o Gâmbia.

A crise litúrgica acomete a religião quando as pessoas não vivem o que celebram, quando o discurso da prosperidade individualista invade os discursos e cerimônias, e as falas sobre o amor servem para mal-disfarçar os desejos egoístas. A crise litúrgica acomete a sociedade. Milhões de pessoas podem se reunir para celebrar o réveillon, em Copacabana ou em Balneário Camboriú, mesmo que não estejam comprometidas com a construção de uma sociedade justa e fraterna.

O papa Francisco tem contribuído para a superação da crise litúrgica em todos os níveis da vida. Não faz um discurso doutrinal com preocupação na exatidão das formulações. Assume um estilo samaritano (Lc 10,30-37), crítico do formalismo religioso, qual peregrino empenhado no serviço aos assaltados que estão padecendo à beira do caminho, como os africanos que atravessam o Mediterrâneo, solitários e vulneráveis, em busca da sobrevivência na Europa.

É o que tem demonstrado também o novo Cardeal da Igreja, dom Orani João Tempesta. Suas peregrinações pelas favelas do Rio de Janeiro, levando solidariedade aos pobres, dão maior autenticidade à liturgia da Igreja. Portanto, há sinais de esperança, e não somente no âmbito da religião, de modo que podemos acreditar que é possível celebrar o que se vive, tendo em vista superar as opressões e crescer na solidariedade, em todas as dimensões da vida, na economia, na política, no esporte e na cultura.

5 comentários

5/2/2014

Moisés Viana

Gostei do artigo, com estilo didático típico . Abraço!

6/2/2014

Zezinho

Gostei também. Porém espero que a argumentação leve a nos perguntar como superar o individualismo da fé em tantas de nossas celebrações litúrgicas católicas.

7/2/2014

Len Aldrin

Reflexão interessante.

12/2/2014

Maria do Socorro

Verdade. Muito boa a reflexão, Valdecir. Tenho saudades de você, meu professor de teologia. Abraços

14/2/2014

Sandra Marilia Costa

Reflexão oportuna sobre a sociedade atual. Parabéns.