Os valores fundamentais da Doutrina Social da Igreja. | Paulus Editora

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Igreja e Sociedade

30/03/2016

Os valores fundamentais da Doutrina Social da Igreja.

Por Valdecir Luiz Cordeiro

Verdade, liberdade e justiça são ideais estruturantes na vida social. A Doutrina Social da Igreja (DSI) os assume e os propõe aos cristãos e pessoas de boa vontade como valores fundamentais para uma atividade política lúcida e esperançosa (cf. Compêndio da DSI, n. 198-203). Em tempos de ânimos acirrados e, sobretudo, de perda de referências, vale aclarar o sentido e a importância desses valores no âmbito do debate público.

Em primeiro lugar, a DSI propõe a verdade como referência fundamental. Mas, aqui, uma questão se impõe: o que é a verdade? Difícil. Mais. Como saber o que é a verdade em meio ao tiroteio do debate político atual?

Ora, nem mesmo o trabalho metódico da filosofia e as teorias científicas mais exatas conseguiram dar uma resposta satisfatória a essa pergunta. Talvez possamos dizer da pergunta sobre a verdade o que Santo Agostinho disse, em suas Confissões, da indagação sobre o tempo: “se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei”.

Jesus de Nazaré, o Cristo, sustenta que o conhecimento da verdade é libertador e que a vocação do homem é dar testemunho da verdade. Contudo, Ele mesmo permaneceu em silêncio quando Pilatos lhe perguntou “o que é a verdade” (cf. Jo 8,32; 18,37-38). Obviamente, Ele tinha dado testemunho da verdade ao anunciar o Evangelho aos pobres e ao revelar o rosto misericordioso do Pai. Por isso, pôde permanecer em silêncio.

De qualquer modo, vamos tentar aclarar a questão recorrendo às três grandes tradições que definiram a nossa cultura, antes de expor a posição da DSI.

Em grego verdade é alétheia. “A” indica negação, “léthe” significa esquecimento e “lethánō”, fazer esquecer. Ou seja, a verdade é o não-esquecido, a auto-manifestação da realidade ao conhecimento das pessoas. Assim, o conhecimento da verdade se assemelha ao olhar distanciado, que capta os contornos objetivos na realidade dos seres tal como eles se manifestam. O contrário disso é a aparência, a obscuridade, o esquecimento ou o encobrimento, intencional ou não, da realidade das coisas.

Em latim verdade é veritas. No campo da linguagem, refere-se à narrativa que relata os fatos tais quais acontecidos. O contrário de verdade é imprecisão ou, em casos de má fé e descaro, a mentira pura e simples.

Em hebraico verdade é ’emet e ’emunah, sendo que ’emet refere-se ao aspecto verbal da linguagem (enunciado, promessa, mandamento) e ’emunah à qualidade pessoal no sentido de confiança e fidelidade. A palavra amém, “assim seja”, também faz parte do campo semântico da verdade.

Sendo assim, na tradição bíblica a verdade envolve pessoas, fundamentalmente Deus, mas também os homens, e tem o sentido de fidelidade e confiança.

O profeta Jeremias lamenta a infidelidade de Israel à vocação de ser um povo livre. Ou seja, o profeta denuncia a falta de verdade na experiência histórica do povo: “eu havia plantado você como lavoura especial, com mudas legítimas. E como é que você se transformou em ramos degenerados de vinha sem qualidade?” (Jr 2,21).

Jesus também lamenta que Israel não seja fiel, ou seja, verdadeiro, à sua vocação de viver a fraternidade, a justiça e a paz, sintetizadas na esperança messiânica (cf. Mt 23,37).

O filósofo Lorenz B. Puntel define verdade na bíblia como o que designa o ser firme, o que se sustenta, aquilo em que se pode confiar, aquilo que serve de orientação, o que, de certo modo, resume o legado das grandes tradições que constituem a nossa cultura.

Em suma, a verdade envolve pessoas (de acordo com a Bíblia, Deus e os homens), se relaciona com a realidade como um todo e, consequentemente, consiste na confiança de que o que foi prometido se cumprirá com fidelidade. Lembrando que mesmo a realidade das coisas tem uma promessa, uma palavra, que se enuncia na auto-manifestação dos seres ao intelecto humano.

No âmbito da DSI, o Papa João XXIII sustenta que o viver na verdade tem um significado especial nas relações sociais. A convivência entre os seres humanos em uma comunidade é efetivamente ordenada, fecunda e condizente com a sua dignidade de pessoas quando se funda na verdade (Pacem in terris, 265-266. 281). O Papa Francisco, por sua vez, chama a atenção para os riscos de manipulação. No sistema econômico e na cultura atuais “o real cede o lugar à aparência” e o meios de comunicação, por exemplo, manipulam a realidade a fim de defender interesses contrários aos interesses econômicos dos povos (Evangelii Gaudium, n. 61. Cf. também o n. 62).

A verdade tem a ver com a fidelidade à vocação do ser humano ao amor e ao serviço. Assim, não se pode pensar a verdade senão na perspectiva de uma convivência harmônica, livre das formas de dominação e agressão à vida.

Em segundo lugar, a DSI assume a liberdade humana com um valor inalienável, posto que a liberdade é o sinal mais evidente da dignidade da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus. Antes de qualquer esquema ou plano de ação, o cristão deve cuidar da centralidade da pessoa humana e sua liberdade. Nada, em nenhum tempo ou circunstância, justifica qualquer ataque à liberdade da pessoa.

Mas a experiência da liberdade só é autêntica quando cria mais liberdade. A liberdade se exerce no relacionamento entre os seres humanos, de modo que a liberdade de um deve assegurar a liberdade dos outros. Cresce também a consciência de que a liberdade humana não se constrói à custa da dominação da criação, sem o respeito à Casa Comum. Caminho exigente, mas possível e desejável.

Em terceiro lugar, a DSI assume o ideal da justiça como um valor fundamental. Decorre da própria fé, rejeita as desigualdades e as iniquidades. Segundo a formulação mais clássica de justiça, “ela consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido” (Sto. Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 58, a. 1).

Grande desafio no tempo atual. Estudos mostram que as desigualdades sociais atuais só são comparáveis às que ocorreram em fins do século XIX, as quais estiveram na raiz da crise econômica de 1929. Só para se ter uma ideia do que falamos, 60 bilionários detém aproximadamente a metade da riqueza global atualmente e o mundo mergulha numa crise econômica até agora sem horizontes de superação. Tamanha injustiça levou o Papa Francisco a afirmar que “esse sistema mata”, associando a problemática à violação do quinto mandamento da lei de Deus, e a conclamar a todos a um estilo de vida simples e livre da dominação (Evangelii Gaudium, 49-51).

Os cristãos e pessoas de boa vontade, comprometidos com os valores da verdade, da liberdade e da justiça, podem participar no campo da política com mais lucidez, serenidade e esperança. Estarão menos sujeitos à desorientação e às tendências desagregadoras.

1 comentário

4/7/2017

ANTONIO VALENTINO DA SILVA NETO

Uninter - Artigo Valores Fundamentais da Doutrina Social da Igreja.