Duas Vidas Maceradas | Paulus Editora

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Plural

05/04/2017

Duas Vidas Maceradas

Por Antonio Iraildo

A fome é um troço que dói. Dói tanto que a cabeça não pensa. O cérebro rodopia feito aquele brinquedo de antigamente chamado pião. É qual redemoinho no sertão, levanta a poeira e a gente se benze porque ali no meio pode ter o cão. Quem está com fome não quer outra coisa a não ser comer. E aqui não se trata de regime ou jejum. É fome mesmo. A fome imposta! Aquela imposta pelos gananciosos, que concentram tudo para si e deixam multidões com as tripas roncando e os olhos cinzentos.

O menino

João Victor certamente sentira fome desde o ventre materno. Filho da periferia de São Paulo, cidade que esbanja lixo e luxo. Naquele dia de carnaval só queria as migalhas. Ele sabia que ali havia comida de sobra. Era o paraíso das esfirras. Entrar no paraíso não podia. Sem dinheiro, malvestido, olhar de menino de rua, um olharzinho carente e pidão. Entra não! A rua era também sua. Achava que fosse. Tinha pai e mãe e irmãos. Tinha fome!

O pequeninho nos seus 13 anos curtos experimentara tanta maldade. Porém jamais retrucara maldade com maldade. Seu coração inocente só queria brincar. E aquele cheiro de esfirra, e aquele povo entrando e saindo do paraíso, e seu estômago vazio. Suas mãozinhas estendidas, seus dedinhos manchados, menino sem banho.

O pequenino foi macerado pelas mãos da maldade. Seus anos encurtados nesta travessia. Apertaram seu corpinho frágil, deram tapas na cabeça. Joãozinho deu o último suspiro. 26 de março de 2017. Era domingo.

A travesti

Antônio Cleilson desde cedo sentia dentro de si que era diferente. Talvez soubesse, talvez não. Adotara o nome de uma guerreira: Dandara, esposa de Zumbi dos Palmares. Para superar o preconceito abraçara a alegria como antídoto. Fazia todos rirem à sua volta. A mãe achava que um dia o filho seria um humorista famoso. Dom ele tinha. Dandara só queria viver, do seu jeito. A alegria incomoda muita gente.

Sua travessia foi encurtada. Paradoxalmente a maldade o macerou num local chamado Bom Jardim, um bairro de muitas árvores. Ali foi seu Getsêmani, seu calvário. Todos se esconderam. Dandara enfrentou o sofrimento sozinha. A polícia chegou muito tempo depois. Os malvados atiraram pedra nela, chutaram-na, bofetearam-na. As maçãs de seu rosto branquinho se avermelharam. Seus olhos da cor do céu do Ceará se ensanguentaram, se apagaram.

Dandara, 41 anos, da periferia de Fortaleza. Macerada em 5 de fevereiro de 2017. Era segunda-feira.

1 comentário

5/4/2017

Ricardo Vieira Pereira

Pe. Antônio Iraildo, Se não te conhecesse teria passado a ser seu fã, como te conheço, só aumenta minha admiração. Teu coração sempre voltado aos necessitados e um olhar sempre atento as maldades que nossa sociedade impõe aos mais fracos. Que Deus permita que sigas trilhando este caminho iluminado por muito tempo, espalhando luz e serenidade a todos que tem o privilégio de contigo conviver ou simplesmente ler teus textos lindos, despojados de preconceitos e parcialidades. Um grande abraço recheado de saudades.