Para Bento XVI, o que é a teologia? Uma Introdução. | Paulus Editora

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Teologia

02/02/2019

Para Bento XVI, o que é a teologia? Uma Introdução.

Por Rudy Assunção

O mundo contemporâneo está tomado pela discussão acerca do conhecimento válido, comprovável. Nele ainda há lugar para a Teologia?  Quem lê com atenção a última entrevista de Bento XVI ao jornalista alemão Peter Seewald – Letzte Gespräche – vê que, pela primeira vez na história um papa (emérito) avalia o próprio pontificado. Repassando mais uma vez a história de sua vida, diante do leitor aparecem os nomes mais significativos da teologia europeia do século XX: Guardini, De Lubac, Balthasar, Danièlou, Schmaus, dentre muitos outros. O teólogo Ratzinger viveu sempre intensamente mergulhado no mundo da “ciência de Deus”, por assim dizer. Seus amigos, seus interlocutores, suas referências, além do núcleo familiar, que ele recorda com afeto evidente, são sobretudo importantes teólogos. Ele mesmo diz a Seewald que, embora tenha sempre buscado ser um pastor, nunca deixou de ser um professor, o implica “ser um professante, um confessor. Os termos professor e confessor, filologicamente, significam mais ou menos o mesmo, sendo que a missão está naturalmente mais próxima da de confessor[1]. Ou seja, Bento XVI sempre quis, enquanto professor, dar a centralidade ao ato de professar a fé. Por isso quando Seewald lhe pergunta qual a marca principal do seu pontificado, responde coerentemente que fora precisamente o Ano da Fé (11 de outubro de 2012 – 24 de novembro de 2013, encerrado, portanto, pelo Papa Francisco). Com ele Bento XVI desejava “reencontrar a centralidade da fé”[2]. Seu pontificado estava, portanto, orientado pela “intenção positiva de colocar no centro o tema ‘Deus e Fé’”[3], colocando igualmente em evidência a Sagrada Escritura e a Tradição da Igreja.  Suas viagens refletiram precisamente este tema.

Na mesma entrevista – da qual partem estas nossas reflexões – ele recorda o seu primeiro semestre como professor na Universidade de Bonn (1959-1963), no se dedicou tanto à temática da filosofia da religião quanto do conceito de teologia. As perguntas que lhe orientaram eram as seguintes: “como justificar a teologia? O que é que ela tem de fazer? O que é por assim dizer o seu ofício, a sua justificação interior? […] como se pode, afinal, justificar a teologia na universidade? Tem cabimento na nossa universidade moderna? Ou é um corpo estranho que, pelas suas origens medievais, por acaso estagnou e, na realidade, não deveria estar presente na universidade?”[4].

É interessante notar que o tema da Revelação, da Escritura e da Tradição – que estão particularmente na Constituição Conciliar Dei Verbum, sobre a qual Ratzinger trabalhou intensamente durante o Concílio – e o da teologia enquanto ciência figuram entre os temas que lhe são mais caros e aos quais quereria ter se dedicado mais[5]. Ora, o tema em tela está, portanto, no centro das preocupações intelectuais de Ratzinger.

Num texto de 1979, Ratzinger se concentra em três teses que explicitam o seu conceito de teologia[6]. Tratar-se-á de cada uma delas pormenorizadamente. A primeira tese é que a teologia se refere a Deus. Ele é o objeto da teologia. Aqui ele se distancia decididamente da concepção medieval baseada no Liber Sententiarum de Pedro Lombardo, que se apoia em Santo Agostinho, que defendia que a teologia tem como objetos res et signa, doutrina das coisas e dos signos/sinais[7]. Neste ponto específico Ratzinger parte de Tomás de Aquino, mostrando assim um pouco de sua face tomista. Assim, Ratzinger se posiciona frente à controvérsia teológica do século XIII entre duas escolas: a tomista, para a qual a teologia era scientia speculativa e a franciscana, para qual esta era scientia practica. Na visão de Ratzinger esta controvérsia reemerge no debate pós-Vaticano II entre ortodoxia e ortopráxis. Onde esta concepção se radicalizou não se concebe mais uma verdade anterior à práxis; a verdade seria produzida pela práxis correta. A teologia, para Ratzinger, seria reduzida a uma introdução à ação; refletindo sobre a práxis a teologia abriria para ela novas possibilidades. A teologia reduzida à scientia practica desemboca na perda de verdade[8]. Aqui Ratzinger se apoia no axioma de Romano Guardini, que defendia o primado do logos sobre o ethos, do primado do logos sobre a práxis[9], ou seja, este último adotava também ele a visão tomista da teologia como scientia speculativa[10]. O cristocentrismo deveria superar a si mesmo e fazer possível, por meio da história de Deus, o encontro entre o homem e Deus. Na linha também de Irineu de Lião, o pai da teologia propriamente dito, Ratzinger defende que a cristologia é falseada quando não chega a ser teo­-logia.

Assim é que Ratzinger aponta para a segunda tese: a teologia se ocupa de Deus, mas de acordo com o método filosófico[11]. Para ser fiel a seu ponto de partida histórico – o evento salvífico que está em Cristo – deve superar a história e dedicar-se a Deus. A fidelidade à práxis evangélica depende de sua autocompreensão como scientia speculativa. Aqui Ratzinger defende o primado da verdade, antes de qualquer ponderação sobre a sua utilidade prática.  Neste contexto fica clara a forte influência guardiniana e a tomista.[12]

Mas Ratzinger não deixaria Boaventura de fora, que compartilha a visão tomista do objeto da teologia ser Deus mesmo. Boaventura teria adotado em uma segunda época de seu pensamento uma concepção presente já em Aristóteles e, depois, no Pseudo-Dionísio: teologia é o discurso divino em palavras humanas, enquanto teológica é a reflexão humana sobre as palavras divinas. Neste caso a verdadeira teologia seria a Sagrada Escritura. Nesse sentido Deus é também o sujeito fundamental da teologia. Mas o falar de Deus não está desvinculado do falar dos homens. Assim os theologoi são aqueles pelos quais o falar de Deus entra na história.

A terceira e última tese ratzingeriana é aquela que diz: a teologia é ciência espiritual (sobretudo pelo fato que os teólogos normativos são precisamente os autores da Sagrada Escritura)[13]. Mas o enfoque ratzingeriano com esta terceira tese é de que a produção da teologia exige determinado contexto vital. Para ele é possível estudar teologia como qualquer outro conhecimento transmissível e exótico, dentro do ambiente universitário. Mas sem as realizações espirituais nas quais vive a teologia ela se cairia logo em contradição, em estéril neutralismo acadêmico.

[1] BENTO XVI; SEEWALD, Peter. Conversas finais com Peter Seewald. Alfragide (Portugal): Ed D. Quixote, 2016, p. 266.

[2] Ibid., p. 262.

[3] Ibid., p. 220.

[4] Ibid., p. 132.

[5] Cf. Ibid., p. 265.

[6]  RATZINGER, Joseph. Teoría de los Principios Teológicos: Materiales para una teología fundamental. Barcelona: Herder, 1985.

[7] Ibid., p. 380-381.

[8] Ibid., p. 383-384.

[9] Ibid., p. 388.

[10] Ibid., p. 384.

[11] Cf. Ibid., p. 380.385.

[12] Cf. ibid., p. 385.

[13] Ibid., p. 387.

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