Quem assistiu – com um olhar cristão – as recentes comemorações nas ruas da Irlanda e da Argentina pela aprovação ou pelo avanço do projeto de legalização do aborto nestes países não pôde deixar de ficar espantado com a euforia coletiva que o desrespeito ao quinto mandamento pode causar. A “maldade moral”[1] que ali se expressou só nos leva a refletir sobre o papel e a relevância da Igreja no debate público, sobre o que ela deve dizer e o que ela deve fazer, sobretudo quando estão em risco milhares de vidas inocentes.
Para isso contaremos com o apoio do magistério de Bento XVI[2]. Mas, antes, é preciso fazer algumas considerações de natureza sociológica, por assim dizer: hoje querem confinar toda expressão religiosa à esfera privada. Isso não é apenas um processo, mas parece mais um projeto. A mesma época que prega que a sexualidade se torne mais e mais pública, pede – impõe – que a fé (sobretudo a cristã) se esconda no quarto mais fundo da casa. Por isso, recusa-se a aceitar que a Igreja entre no debate público. Permitir a existência da fé na intimidade não é uma concessão benevolente, mas uma estratégia: ali ela não tem relevância, não incomoda, não corrige. Ali ela deveria morrer.
A Igreja como poder moral
Partamos do pensamento de Bento XVI: no respeito à “justa autonomia das realidades terrestres”[3], sem pretender agir como um partido político, a Igreja não pode deixar de ser “uma realidade moral, um poder moral”[4]. A ela cabe o cuidado com o fundamento ético das escolhas políticas; ela deve “ajudar a purificar e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objetivos”[5]. Então, uma sociedade que tentasse calar a voz da Igreja no campo moral – como extensão da rejeição a Deus – só pode se tornar cada vez mais injusta, desumana, irracional e, no pior dos casos, tirânica.
A Igreja como força de contradição profética
Não é de hoje que a Igreja derrama o seu sangue por não se dobrar frente à idolatria dos poderes deste mundo, como o Estado, que muitas vezes tenta assumir o lugar de Deus. Os mártires são a mais eloquente memória disso. Mas ainda hoje, e cada vez mais, a Igreja paga um preço altíssimo por se colocar contra a corrente ideológica dominante, contra a “ditadura do relativismo” [6]. Por isso, o então cardeal Ratzinger recordava: “À Igreja cabe um papel de contradição profética, e tem de ter coragem para isso”[7]. Uma Igreja tíbia só serve ao próprio declínio. Depois de discernir os espíritos, a Igreja deve dar o seu “sim crítico”[8], que rejeita e purifica o que é mal nos valores modernos e ajuda desenvolver o que neles é nobre, bom e justo.
Os princípios inegociáveis
Para a Igreja, há valores que não são negociáveis e que não estão submetidos ao critério do gosto ou da vontade da maioria. E é para defendê-los que ela entra no debate político. O Papa Bento XVI de lembrar compromisso eclesial inescapável neste âmbito: “No que se refere à Igreja Católica, o interesse principal das suas intervenções no campo público é a tutela e a promoção da dignidade da pessoa e, por conseguinte, ela chama conscientemente a uma particular atenção aos princípios que não são negociáveis. Entre eles, hoje emergem os seguintes: tutela da vida em todas as suas fases, desde o primeiro momento da concepção até à morte natural; reconhecimento e promoção da estrutura natural da família, como união entre um homem e uma mulher baseada no matrimônio, e a sua defesa das tentativas de a tornar juridicamente equivalente a formas de uniões que, na realidade, a danificam e contribuem para a sua desestabilização, obscurecendo o seu caráter particular e o seu papel social insubstituível; tutela do direito dos pais de educar os próprios filhos. Estes princípios não são verdades de fé mesmo se recebem ulterior luz e confirmação da fé. Eles estão inscritos na natureza humana e, portanto, são comuns a toda a humanidade”[9]. Estes não são valores confessionais, e sim, naturais, pois são defensáveis por qualquer um que se atenha à razão natural. São valores da Igreja somente na medida em que ela se sente guardiã deles.
[1] IGREJA CATÓLICA, Catecismo da Igreja Católica, 2271.
[2] Uma versão preliminar deste texto apareceu na revista O fiel católico. Revista de Teologia, Catequese e Doutrina em dois artigos distintos (aqui fundidos). Dadas as circunstâncias atuais, pareceu-nos oportuno retomar e retocar os argumentos apresentados no texto.