CCA De Olho no Futuro realiza Cortejo de Encerramento de 2016

08/02/2017

Por Miralva Lopes de Jesus - Orientadora Socioeducativa do CCA De Olho no Futuro

Quem leu sobre nosso último cortejo pode se lembrar da última frase do texto[1]: “algumas crianças levaram suas maquetes para o cortejo e, simbolicamente, representaram o que esperamos efetivar: caminhar com a comunidade.” Pois bem, essa frase não representa um mero aforismo, esse objetivo nunca será uma simples vontade, ele é um dos nossos principais geradores de energia. Então, se você tem fé – e não estamos falando de Deus, embora possa ser Ele – percorra seus olhos por esse texto cheio de sentidos (com toda ambiguidade da palavra) para compartilharmos sensações e direções.

Nós, humanos, somos seres simbólicos, ritualísticos, precisamos registrar os momentos de passagens, de mudanças. Por isso, encerrar um ciclo não se dá de modo corriqueiro, usual, sentimos a necessidade de marcar a transição com algo que possa ser memorável. No caso da passagem de um ano ao outro, o ritual é duplamente significativo porque há o olhar lançado ao futuro e há o olhar que se volta para o passado. Busca-se um equilíbrio entre o que nos constituiu no ano que se vai e o que pode nos constituir no ano que se nos apresenta como novo. Considerando essa realidade, nosso último dia de atividades com as crianças e os adolescentes foi marcado por outro cortejo, mas para melhor compreendê-lo é necessário que lancemos um olhar para um passado recente.

Em meados de agosto, por ocasião da chegada de uma nova orientadora no Projeto, o coordenador, Fábio, lançou um desafio para toda a equipe, desafio esse que objetivava provocar reflexões e, concomitantemente, ser um modo de dar as boas-vindas à nova colega de trabalho. E cabia a ela dar uma resposta inicial ao desafio. A proposta era fixar à concertina que circunda os limites privados do Projeto algo que pudesse despertar um novo olhar sobre aquilo e, principalmente, aqueles que nos cercam. A ideia era que a nova orientadora iniciasse a intervenção e que os demais fossem desenvolvendo suas próprias intervenções até que a concertina fosse ressignificada.

Antes de continuarmos, vale um parêntese: é de compreensão da equipe a necessidade da presença da concertina e do sistema de vigilância em geral. Eles estão presentes no local por razões práticas e fundamentais. No entanto, é sempre fértil nos movimentarmos por espaços que nos catapultam para além do senso comum, que inquietem nossa zona de desconforto e ampliem nossos horizontes de possibilidades.

Voltando ao ponto anterior, a linguagem escolhida foi a palavra escrita, representada por uma etiqueta com a pergunta: Cerca, o que a cerca? Dos desdobramentos e reflexões que a questão provocou, os preconceitos evidenciaram-se como uma das principais cercas que nos cercam.

Valendo-nos de uma parte de nossa humanidade, nesse caso de nossa natureza simbólica, nós, do CCA De Olho no Futuro, escolhemos registrar a passagem do ciclo de 2016 para 2017 por meio de um cortejo no CEU das Artes, atendendo ao convite realizado pelo CRAS 1° de maio (Centro de Referência da Assistência Social), um de nossos parceiros, que faria um evento de finalização de suas atividades anuais. E a pergunta fixada na concertina batizou o cortejo.

Assim, sob essa perspectiva, os orientadores conduziram com os atendidos a concepção do novo cortejo. De modo coletivo foram deliberados quais elementos comporiam a expressão simbólica que marcaria o fim de nossas atividades do ano. Desse fazer junto, muitos foram os preconceitos citados que representam as cercas que cercam nosso conviver social, como o racial, o religioso, de orientação sexual etc. Com isso, dividimos o cortejo em alas nas quais as crianças e os adolescentes puderam representar as especificidades de cada uma. Foram elas: ala nordestina, representada pela capoeira e o frevo; ala da cerca, representada por bambolês unidos e com a palavra ‘preconceito’ em seus centros, e placas com a frase: o que é a cerca para você?; ala transformação, representada por fantasias com imagens de borboletas e flores para indicar a ideia de mudança de estado e desabrochar. Além dessas alas, o cortejo contou, claro, com a banda e com um novo estandarte. O que se expressa aqui é o corpo do cortejo, o quanto todas as suas partes são essenciais, e que ele tem uma razão de ser que emerge do cotidiano, da convivência; que existe uma atenção presente para o sensível, para o simples que surge do espontâneo. Não é fácil, longe disso, todo esse processo é bem trabalhoso, demanda energia, principalmente para quem tem que estimular a energia. Mas, ao mesmo tempo, apesar da aparente contradição, pode-se pensar numa força natural, orgânica, é como chover na terra, vai brotar alguma coisa ali. Atuar com criança e adolescente é mais ou menos isso: chover na terra. O cortejo é árvore.

Realizado em 16 de dezembro, o evento contou com a presença de familiares dos atendidos, de famílias acompanhadas pelo CRAS 1° de maio e crianças atendidas pela Associação Camila, mantenedora do CEU das Artes. Pela proximidade entre o Projeto e o CEU das Artes, local onde o CRAS está alocado, fomos a pé, despertando a curiosidade daqueles que nos observavam. Uma vez lá, enquanto aguardávamos o início do evento, uma roda de capoeira se fez, algo fora do planejado, mas total e completamente dentro da espontaneidade do tempo. Depois, puxou-se a chegança[2], seguida de uma performance a qual consistia na cerca representada pelos bambolês com a palavra ‘preconceito’ e que foi rompida ao fim da declamação de uma poesia[3] feita pelo orientador Rodrigo Cristalino. Na sequência foi tocado o samba do amor[4], se fez a roda dos companheiros[5]– inspirada no canto entoado pelas mulheres em suas marchas de luta – e encerramos o primeiro momento do cortejo com um abraço coletivo[6]. No segundo momento, adentramos o teatro do CEU das Artes e tocamos as músicas compostas pelas crianças e adolescentes: o ijexá da transcomunicação[7] e o rap da transformação[8]. Ao final, Fábio, fez uma fala de apresentação do Projeto e de agradecimento a todos os presentes. Para encerrar, recitou a poesia ‘João, Rubi e Nato’ de sua autoria em parceria com Robson Mariano[9].

E foi assim que o CCA Projeto de Olho no Futuro se despediu de 2016 e abriu os braços para 2017: consciente de seus desafios, mas fazendo da criação coletiva barco para navegar num mar profundo de riscos, novidades e belezas.

 

 

[1] http://www.paulus.com.br/assistencia-social/noticias/evento-triplo-acontece-no-scfv-de-olho-no-futuro/#.WI9nv1MrKM8
[2] Cheguei meu povo / Cheguei pra alegrar / Sou eu baque do futuro / Vim aqui pra festejar
[3] Cerca, o que a cerca? / O que cerca a cerca? / Cerca nossas diferenças / Nossos ritmos e crenças / Trocas de experiências / Nos fechando a convivência.
[4] Nosso maior tesouro é o amor (2x) / Fé e esperança / Qualquer um é capaz de conviver em paz / De conviver em paz / Uma pista leva à outra pista / Alguém arrisca a adivinhação / Com trabalho em equipe, honestidade e união / Aqui tem caça ao tesouro / Brincadeira e diversão.
[5] Companheiros nos ajudem que não podemos andar só / Sozinhos andamos bem / Mas com vocês será melhor.
[6] Um abraço dado de bom coração é o mesmo que uma benção, uma benção, uma benção.
[7] Transformação (2x) / Mais cultura amizade e comunicação / Transformação (2x) / Arte do brasileiro em nosso coração / Transformação (2x) / Partilhando conselhos pra população!
Mais cultura amizade e comunicação…
[8] É! É muita amizade. É! / Coletividade. É! / No Santa Maria que / A cidadania é / Tempo da travessia. É! / Todos juntos e além. É! / Diversão e união. / Tem! / Educação e consciência / Com / Humildade e gratidão / Pra fazer transformação!
[9] João, Rubi e Nato
Eram três crianças que vivam cantando
Um estudava o dia inteiro
O outro estudava e trabalhava
E o outro morria trabalhando
Cresceram cada qual no seu lugar
Nos desencontros da vida
Viviam a se encontrar
João teve muitas oportunidades
Rubi somente a metade
E nato ficou só na vontade
João virou doutor
Rubi vendedor
E pro Nato pouco restou
Rubi vendia marmita
Doutor João comprava
E Nato entregava
Um dia a marmita chegou pela metade
Doutor João exigiu a verdade
E Rubi não soube responder
Nato ainda envergonhado
Justificou-se acanhado
Estou desde ontem sem comer
Não é malandragem!
É fome “seu” doutor
Eu queria encher minha barriga também
Estou desde ontem sem café, almoço e jantar
Não estou me sentindo muito bem