O trabalho no acolhimento institucional: Reflexões sobre a prática profissional e a garantia de direitos
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Por: Magda Pereira Duarte

Esta breve reflexão é fruto de momentos de troca e discussões durante a formação intitulada Acolhimento Institucional, Desafios e Possibilidades, realizada no mês de fevereiro de 2025, por meio do Programa de Assessoramento da PAULUS. Durante os encontros, além de temáticas concernentes a legislação – Política Nacional de Assistência Social (PNAS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), inúmeros conteúdos acerca do trabalho dos profissionais, a ausência de avanços neste sentido e a precarização do trabalho neste serviço também foram mencionados, complicadores que tensionam o cotidiano de trabalho desses profissionais. É fato que há marcos legais que preconizam a proteção integral de crianças e adolescentes em medida protetiva de acolhimento, com avanços significativos neste sentido, contudo, a ausência de políticas públicas, formação continuada e melhores condições de trabalho aos profissionais compromete a efetividade dos direitos preconizados, sendo estas as principais questões abordadas a seguir.
Durante os encontros, os profissionais, inúmeras vezes, apresentaram queixas e preocupações quanto as condições de trabalho. Refletir sobre este aspecto se mostra imprescindível, na intenção de aprofundarmos ponderações acerca dos desafios e possibilidades de trabalho em um espaço que pretende garantir o cuidado e proteção à crianças e adolescentes vítimas de violência, abandono, negligência e maus tratos.
Ao pensarmos a complexidade e a organização do processo de trabalho com crianças e adolescentes e suas famílias, aponta-se como inadiável a instrumentalização destes trabalhadores, com promoção de conhecimentos que indubitavelmente são essenciais na execução da política de assistência social e garantia de direitos. Outrossim, promover discussões sobre ética e estimular a criticidade são indispensáveis, sendo estas reais possibilidades de melhoria continua do Serviço, que tem em sua origem a contradição de cuidar de crianças e adolescentes, livrá-los de situações de violência e abandono, mas por vezes as expõe à vivências extremamente traumáticas durante o acolhimento institucional, algo iniciado no momento da aplicação da medida, já que nas lentes desta criança ou adolescente quase sempre o melhor lugar para permanência é o seio familiar, cabendo ao Estado, aplicar a medida sempre que necessário, com a finalidade de garantir a proteção destes acolhidos.
Este paradoxo se manifesta também na concepção de que o serviço de acolhimento é este lugar provisório, mas que pode ser de longa permanência; tem características de uma residência, mas abriga indivíduos que não tem parentalidade entre si; é local de cuidado e proteção, mas muitas vezes crianças e adolescentes são conduzidos ao serviço de forma violenta. É também importante, destacar o trabalho a ser realizado com as famílias, núcleo social fundamental conforme diretrizes da PNAS, pois o Brasil possui uma cultura de rompimento de vínculos familiares em decorrência da pobreza, ação esta que perdura até o presente, visto que os usuários são quase sempre famílias abandonadas pelo Estado. Cabe aos profissionais evitar a culpabilização das famílias, devendo considerar as expressões da questão social, responsabilidade do Estado e de toda a sociedade na premissa de cuidar e garantir direitos a crianças e adolescentes. Perceber o acolhimento institucional para além dos estereótipos, considerando as particularidades tão desconsideradas pelo Estado, é tarefa dos trabalhadores do serviço. Desta forma, qualificar a prática e buscar possibilidades mesmo diante dos entraves que se apresentam é de extrema relevância.
A história do país revela uma tradição caritativa na política de assistência social, ainda amplamente percebida pela sociedade não como uma garantia de direitos, mas como um gesto de bondade por parte do poder público ou das organizações responsáveis pela sua execução. Essa visão distorcida contribui para a naturalização da precariedade com que muitas dessas organizações operam, frequentemente com repasses financeiros insuficientes. Tal negligência escancara a omissão do Estado e é agravada pela falta de conhecimento da sociedade sobre os fundamentos e a importância desses serviços. Ao serem tratados como atos de benevolência, esses atendimentos reforçam uma lógica preconceituosa e higienista, que ainda espera que crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade sejam institucionalizados, perpetuando, assim, práticas alinhadas à perspectiva do antigo Código de Menores.
Estas expressões se mostram evidentes quando inúmeras pessoas e até agentes atuantes em políticas públicas sociais sentem saudades das instituições totais, ou seja, crianças e adolescentes não utilizando os serviços públicos como qualquer outro cidadão de direito, mas sim, com atendimento apenas nos espaços da instituição de acolhimento, sem convivência e participação da vida em sociedade.
A medida protetiva de acolhimento institucional permanece sendo percebida como uma solução para as famílias em situação de pobreza. Embora outros motivos para sua aplicação também sejam citados, a pobreza permanece como o principal fator subjacente, dificultando a superação das condições que levam ao acolhimento e, consequentemente, comprometendo a reintegração familiar. Diante disso, é essencial desconstruir os estereótipos relacionados aos usuários desse serviço e promover a capacitação contínua dos profissionais, que enfrentam diariamente situações que desafiam suas próprias crenças, valores e culturas. A formação permanente se apresenta, assim, como uma ferramenta crucial para promover mudanças significativas. Contudo, essa necessidade esbarra na dificuldade desses profissionais em acessar espaços que favoreçam reflexões críticas e pertinentes ao trabalho social.
É desafiador — mas potente e imprescindível — o fato de o trabalho social ser integrado por equipes profissionais de diversas áreas, com formações de nível médio, técnico ou superior, com enorme diversidade, e necessidade de conhecimentos e saberes específicos para cada grupo, o que demonstra a imprescindibilidade de formação a todos os profissionais envolvidos, e que de forma direta ou indireta perpassam a vida de crianças e adolescentes acolhidos.
A equipe técnica do serviço tem papel fundamental no atendimento das crianças, adolescentes e suas famílias, pertencendo a este grupo o maior número de participantes na formação que originou este artigo. As trocas evidenciaram sentimentos de incapacidade e impotência destes trabalhadores, que relataram a sobrecarga de trabalho e as múltiplas variáveis presentes em suas atividades profissionais como fatores que contribuem para o adoecimento, além de, em algumas situações, comprometerem a eficácia do trabalho realizado.
A professora Maria Stela Graciani (2005), em seu livro Pedagogia Social de Rua chama nossa atenção para a necessidade de se teorizar as práticas da Educação Social, buscando uma melhor compreensão sobre essa realidade. […] as reflexões mais profundas sobre a educação popular nem sempre tiveram ao alcance da maioria dos grupos ou instâncias base, seja pela questão de que a grande parte não entende a forma e a linguagem, seja porque os especialistas não divulgam seus trabalhos teóricos, a não ser em congressos, seminários ou livros, aos quais a maioria não tem acesso (GRACIANI, 2005, p.69), o que dificulta a disseminação de conhecimento na área, e consequente qualificação do trabalho. Ainda segundo Stela, além disso, almeja-se traçar uma metodologia para que a Educação Social tenha capacidade de auxiliar as pessoas a construir um conhecimento crítico da realidade para assim poderem transformá-la.
A citada transformação constitui-se na libertação da sociedade no que tange à desigualdade, injustiça, exploração econômica, dominação política e dependência cultural, a fim de satisfazer as necessidades sociais e constituir uma sociedade justa, realidade que somente pode ser efetivada, por meio da práxis. Tal concepção necessariamente deve estar nas discussões destes trabalhadores, pois caso não haja esta transformação não há possibilidade de trabalho social e garantia de direitos.
Reflexões acerca dos saberes e fazeres dos trabalhadores do serviço de acolhimento foram constantes durante os encontros, uma vez que no cotidiano todos os trabalhadores são considerados igualmente educadores, no entanto, o que ocorre é uma segmentação das práticas educativas. Os técnicos de referência desse Serviço são profissionais que possuem saberes e práticas bem definidos. No entanto, a observação da prática revela confusão quanto aos papéis desempenhados por assistentes sociais, psicólogos e técnicos de áreas complementares, como os pedagogos. Diante disso, torna-se fundamental retomar os limites de atuação e os espaços sócio-ocupacionais de cada profissional, a fim de garantir uma atuação mais organizada, ética e eficaz.
Essa situação é resultado das inúmeras demandas impostas aos profissionais do serviço, que vão desde o acompanhamento de crianças e adolescentes em atendimentos médicos até a participação em audiências concentradas. O educador social, por sua vez, é responsável pelo acompanhamento dos acolhidos em todos os aspectos do cotidiano, o que, somado ao número insuficiente de trabalhadores, gera uma significativa sobrecarga. Soma-se a isso o papel dos profissionais de apoio, que frequentemente assumem tarefas que extrapolam suas atribuições formais, mas que se tornam necessárias para garantir o atendimento adequado às crianças e adolescentes. Cabe ao coordenador organizar essa complexa dinâmica, acompanhar o trabalho técnico e gerenciar toda a administração do serviço de acolhimento. Esse cenário, marcado por acúmulo de funções e fronteiras profissionais pouco definidas, contribui para o adoecimento físico e emocional de todos os envolvidos.
Outro aspecto que originou inúmeras discussões é questão de gênero envolvida na desvalorização do profissional que atua na educação social, e embora haja diversidade de formação acadêmica, se faz necessário destacar que se trata de uma profissão com predominância de mulheres atuantes. Desta forma, nota-se a crença de que as competências exigidas ao cargo são naturalmente encontradas nas mulheres, como atributos tipicamente femininos, fator que somado ao baixo prestígio social e a oferta de trabalhadores disponíveis, ocasiona o pagamento de baixos salários, ausência de investimento em qualificação e formação permanente.
Ainda temos que falar sobre o atendimento às famílias e as nuances trazidas neste trabalho. Quando falamos famílias é imprescindível considerarmos todas as diversidades que esta sociedade pode produzir e descartarmos o modelo padrão. Por isso, de acordo com a professora Regina Célia Mioto (1997, p.120) “a família pode ser entendida como um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um lapso de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas, ou não, por laços consanguíneos”. Nesta perspectiva, esta é a família atendida no serviço de acolhimento, sendo notória a incapacidade de atuação por vezes de alguns profissionais da política de assistência social, independente da formação deste indivíduo, arraigado por uma lógica social de modelos e padrões que não abarcam as famílias atendidas e a contemporaneidade.
A assistência social é historicamente marcada por atendimentos categorizados e segmentados, fragmentados em problemáticas, com serviços que foram dispostos a partir de “indivíduos problemas” e “situações especificas”, como, trabalho infantil, abandono, exploração sexual, dentre outras, portanto não contemplando a família em sua totalidade, conforme o Sistema Único de Assistência Social propõe. Ocorre que no serviço de acolhimento “chove um pouco de tudo”, ou seja, todas essas situações se entrelaçam e as diferentes histórias se encontram e precisam ser contempladas.
Esse olhar cuidadoso acerca do trabalho social realizado com famílias que tem a marca da institucionalização de crianças e adolescentes, é condição inegociável aos trabalhadores que se propõem a atuar em serviços de acolhimento, não sendo esta a salvação para todas as mazelas experenciadas por este grupo, que carece de garantia de seus direitos e acesso às políticas públicas que abarquem suas reais necessidades, no entanto, estes trabalhadores são também a representação deste Estado, devendo ser, apesar dos inúmeros desafios, os facilitadores da superação de vulnerabilidades que originaram o acolhimento institucional.
É sabido que a precarização das relações de trabalho impacta diretamente a qualidade da execução das ações da assistência social, manifestando-se em contratações precárias, ausência de planos de carreira, desvio de funções, entre outras fragilidades. Ainda assim, devido à complexidade do trabalho socioassistencial, exige-se dos profissionais um conjunto de competências específicas para atuarem na Política Nacional de Assistência Social. Entre elas, destacam-se: a compreensão da trajetória histórica da assistência social e das políticas sociais, o domínio sobre os direitos socioassistenciais, o trabalho social com famílias, além do conhecimento do arcabouço legislativo, teórico e metodológico referente ao público atendido.
A situação de precarização do trabalho é agravada pela histórica desprofissionalização e forte participação do voluntariado, pela cultura do improviso, pela frágil presença do Estado na sua regulação, provisão e financiamento que marcou toda a trajetória da Assistência Social brasileira até o período anterior ao SUAS. Apesar dos consistentes avanços introduzidos pelo Sistema, os modos de gerir e operar esta política no país carecem, ainda, de mudanças. (MUNIZ, 2011, P. 31)
A situação de precarização do trabalho é agravada pela histórica desprofissionalização e forte participação do voluntariado, pela cultura do improviso, pela frágil presença do Estado na sua regulação, provisão e financiamento que marcou toda a trajetória da Assistência Social brasileira até o período anterior ao SUAS. Apesar dos consistentes avanços introduzidos pelo Sistema, os modos de gerir e operar esta política no país carecem, ainda, de mudanças.
(MUNIZ, 2011, P. 31)
Os profissionais participantes da formação se mostraram comprometidos e críticos a inúmeras problemáticas aqui apontadas, sendo esta uma potência das equipes no cotidiano do trabalho direto com crianças e adolescentes. As discussões e reflexões acerca das práticas, experiências exitosas e construção de processos eficazes de trabalho se apresentaram como possibilidades de qualificação do trabalho social, sendo este um olhar para o recurso humano, entretanto, há necessidades urgentes quanto a recursos materiais, estrutura e políticas públicas que atendam especificamente estas famílias em vulnerabilidade, pois as mudanças na legislação, com diminuição dos prazos para permanência no serviço, reavaliação do processo no poder judiciário, mudanças no processo de adoção e demais alterações no arcabouço legislativo não farão diferença caso não haja condições concretas para a efetivação destas leis.
Termino este breve artigo reiterando a importância de investimento nos recursos humanos do serviço de acolhimento para crianças e adolescentes, pois estes profissionais atuantes e em contato direto com crianças e adolescentes acolhidos são os agentes transformadores da realidade. Não há aqui a intenção de romantizar a profissão, tampouco, a expectativa do que é sobre-humano por parte dos trabalhadores, e sim o reconhecimento de sua importância e a necessidade de valorização profissional e investimento permanente na capacitação destes profissionais. Cabe salientar que o trabalho desenvolvido no serviço de acolhimento institucional deve estar articulado a uma rede intersetorial, uma vez que a política de assistência social não pode atuar de forma isolada, tentando suprir lacunas e omissões decorrentes da ineficiência ou ausência de outras políticas públicas.
Analisar o cotidiano a partir de referenciais teóricos e conceitos que favoreçam a compreensão da realidade é de suma importância. Espaços como os proporcionados nestes quatro encontros representam uma grande potencialidade para o fortalecimento dos trabalhadores e, consequentemente, dos serviços em que atuam. Esse processo implica em transformações significativas, tanto subjetivas quanto objetivas, no exercício profissional, contribuindo para a construção de práticas mais qualificados e para a luta pela garantia de direitos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 8.069 de 1990 que dispõe do Estatuto da criança e do adolescente.
______. Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Nacional de Assistência Social, 2009.
GRACIANI, M. S. S. Pedagogia social de rua: análise e sistematização de uma experiência vivida. 5. ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2005. Coleção Prospectiva. v. 4.
MIOTO, R. C. T. Família e serviço social: contribuição para o debate. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, n.55, p.115-130, 1997.
MUNIZ, E. Orientações para processos de recrutamento e seleção de pessoal no Sistema Único de Assistência Social. Brasília, DF. MDS – Secretaria Nacional de Assistência Social, 2011.