Carta de uma jovem jornalista brasileira aos jovens do lado de lá

Autora: Larissa Lopes*

* Larissa Lopes é estudante de Jornalismo na FAPCOM (Faculdade PAULUS de Comunicação)

A quem esteja lendo, 

Chamo-me Larissa Lopes, tenho 20 anos e moro no estado de São Paulo, uma das 27 unidades federativas do Brasil. Dividimos a mesma geração do século 21 que circula neste planeta que chamamos de Terra. Mas, tenho certeza, essa deve ser uma das poucas — e talvez a única — coisa em comum que compartilhamos. 

Em minha cabeça de criança do ocidente, por muito tempo achei que todos no mundo viviam como eu, afinal o olhar de uma criança é inocente, ignorante, enxerga apenas a brincadeira e espera as horas de comer, dormir e brincar. 

Por outro lado, uma criança que vive em contextos de guerra e violência, certamente, não terá as mesmas “responsabilidades” que tive. Quando cresci a ponto de ter idade para a escola, adorava especialmente as aulas de Língua Portuguesa, História e Geografia. Sempre fui “de Humanas”, como costumamos dizer aqui no Brasil. 

Lembro-me de um dia na escola: eu estava no sexto ano escolar, tinha apenas 11 anos e havia me enfiado em uma sala de aula durante o intervalo — período em que, normalmente, as crianças estão comendo e correndo com seus amigos. Nesta escola, eu não tinha muitos amigos, mas adorava estudar. Então, lá estava eu, na sala de aula, fora do horário, diante de um mapa mundi enorme que ficava colado na parede; era a única sala da escola que tinha um exemplar daqueles. Fiquei olhando, fascinada, de um continente para o outro, observando as fronteiras, as cores, imaginando o quanto eu era pequena diante de tantos territórios. 

Não sei dizer ao certo o motivo, mas desde criança acho que sou um espírito velho dentro de um corpo novo, então, no fundo, sentia que eu estava a olhar lugares que já conhecia, como se os tivesse visitado em vidas passadas. Neste dia, prometi a mim mesma que iria estudar muito para saber um pouco de cada país que tinha acabado de aprender o nome, ainda que a escola pública em que eu estava matriculada não ensinasse tanto aos alunos. Para divertir você, vou lhe contar uma curiosidade: naquele dia, descobri a existência do “Togo”, localizado na África; achei incrível o fato de existir um país tão pequeno em nome e em território. 

Naquela época, em 2012, eu não fazia ideia do que estava acontecendo do outro lado do mundo. Também não sabia que meninas da minha idade podiam estar sendo proibidas de irem à escola; como hoje, mesmo em 2022, acontece com jovens afegãs. 

Como disse, estudei em escolas públicas por toda a minha vida; aqui, no Brasil, o ensino público salva e dá oportunidades a muitas pessoas que não teriam a chance de estudar se tivessem de pagar. Mas, ainda assim, é um ensino deficiente por diversos motivos. Muitos dos conteúdos ensinados nas escolas públicas se repetem ao longo das séries, ou porque faltam professores para avançar no ensino, ou porque a maioria dos alunos não conseguiria acompanhar. É uma realidade triste. Mas sei que não posso mais usar isso como muleta para justificar a minha falta de conhecimento sobre o mundo. Hoje, com 20 anos, tenho acesso à Internet e a materiais que muitas pessoas não têm — e reconheço os privilégios.

Voltando: cresci com o que pude saber sobre cada país do mundo. É impressionante, mas acabei sabendo mais sobre os Estados Unidos do que sobre a Palestina, por exemplo. E, aqui, associo essa “culpa” também à mídia tradicional, seja o rádio, a televisão, os portais de notícias, os jornais dos bairros em que morei. 

Pouco se fala sobre a Ásia e a África, em parte pela distância geográfica, claro, mas sabemos muito bem por quais outras razões isso acontece. Afinal, ouvimos falar, sim, de Portugal, da Alemanha e do Reino Unido, países europeus que também são distantes do Brasil. 

Todos os anos, por exemplo, é tradição ligarmos a televisão na véspera do ano novo, em 31 de dezembro e assistirmos à clássica entrada ao vivo de um repórter para falar que “já é Ano Novo na Austrália”. A Austrália fica a exatos 15.569 quilômetros do Brasil. Até do Iraque ficamos mais próximos: são 11.374 quilômetros de distância. 

Em compensação, posso dizer que ouvi, sim, coisas sobre a guerra na Síria; ela não me é desconhecida, apesar de eu não poder afirmar que sei tudo sobre ela; pelo menos, a mídia não falhou de todo em relação à Síria. Pode ter falhado (e há quem possa me dizer isso melhor) no tipo de cobertura que escolheram fazer. 

No dia em que escrevo esta carta, completam-se 50 dias de guerra da Rússia com a Ucrânia. Solidarizo-me, especialmente, com as mulheres ucranianas que, além de terem sido desrespeitadas por um político do meu país, devem ser as que mais sofrem em meio a tudo isso: mães que tiveram de abandonar seus filhos, ou que os perderam, jovens que tiveram os sonhos interrompidos e meninas que não sabem se poderão voltar à escola. Sinto falta de ver, na mídia tradicional, um pouco mais sobre vocês, para além do número de pessoas que o povo ucraniano perdeu em cada ataque. 

Agora, no último ano da faculdade de Jornalismo, foi -me recomendada a leitura do livro “Que eu seja a última”, da iraquiana Nadia Murad, publicado em 2019. Faltam palavras para descrever o choque que levei ao ler cada página. Mas deixo aqui um dos trechos mais impactantes, em minha opinião, em que Nadia resume as diversas violações que o Daesh fez contra o povo yazidi a partir de 2014: Primeiro, tirou-nos das nossas casas e matou os nossos homens. Depois separou-nos das nossas mães e irmãs. Onde quer que estivéssemos, lembrava-nos de que éramos mera propriedade, existíamos apenas para ser tocadas e vítimas de abusos, como quando Abu Batat me apertou o peito como se o quisesse partir, ou quando Nafah espetou cigarros pelo meu corpo. Cada um destes abusos era um passo na destruição das nossas almas (MURAD, 2019). 

Não posso dizer que imagino o quanto Nadia sofreu, pois estaria mentindo. Nunca sofri nenhum abuso desse tipo, nem de ordem sexual, nem de ordem religiosa. O mais próximo que cheguei da violência foi quando sofri bullying, na escola, aos 11 anos de idade. Mas, de forma alguma, quero comparar aqui as histórias. O que quero é refletir, junto a você que está lendo, como não fazemos ideia do que acontece com outra pessoa do outro lado do mundo, assim como não conheço a sua história. 

No Dia do Jornalista deste ano, comemorado em 07 de abril aqui no Brasil, minha turma de jornalismo pôde receber Ahmad Alzoubi, um jornalista jordaniano que trabalha no Monitor do Oriente Médio (MEMO) e, gentilmente, veio à nossa faculdade — a convite de minha professora Cilene Victor — nos contar um pouco mais sobre a Palestina e o povo palestino. Em minha total ignorância, não sabia que mais de 8,85 milhões de palestinos vivem em refúgio ou exílio, de acordo com o MEMO. Mas não sou de todo catastrófica: ainda bem que, finalmente, voltei a ter a oportunidade de aprender, mesmo que só agora na universidade. Lamento o fato de um jornalista não saber o que acontece com você, sua família, seu povo e seu país. E não tiro minha culpa, também. 

Lamento pela falta de conhecimento que apresentamos em relação ao mundo — aqui, refiro-me ao mundo mesmo, para além do Brasil. 

O jornalista tem o costume de achar que sabe de tudo, que só porque conhece um profissional de cada área automaticamente conhece o mundo. Mentira. Quando li a história de Nadia Murad, percebi ainda mais que não sei de nada. Agora, eu sei um pouco mais do que antes; sei o que ela contou e teve a coragem de dizer; sei o que Ahmad Alzoubi contou a mim e aos meus colegas. Da minha parte, comprometo-me a conhecer mais sobre os yazidis e palestinos, sobre o Iraque, o Oriente Médio e a Ásia; sobre o mundo além do meu país. 

Afirmar que a cobertura jornalística na editoria internacional é deficiente é verdade; dizer que o jornalista não sabe sobre os países da região do MENA (Oriente Médio e Norte da África) também é verdade; mas não posso afirmar que o jornalista não tem a oportunidade de falar sobre vocês, porque ele tem; eu tenho. 

A oportunidade de falar sobre qualquer coisa nos é dada quando adentramos a graduação em jornalismo; quando, ao sermos questionados pelo professor em sala de aula, escolhemos uma determinada pauta e não outra; quando eu escolho escrever sobre algo que me é confortável ou que me é fácil, porque já conheço e, então, será “melhor”. Todos os dias, escolhemos sobre o que vamos falar desta vez. E, hoje, mesmo atrasada, escolho vocês.

MURAD, Nadia. Que eu seja a última: minha história de cárcere e luta contra o estado islâmico. Tradução de Henrique Guerra. São Paulo: Novo Século Editora, 2019

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