Movimento negro, participação social e as Políticas de Promoção da Igualdade Racial

Autora: Suelma Inês de Deus Branco*

*Assistente social, mestre em gerontologia social, ativista no Grupo de Estudos das Relações Étnico-Raciais no Serviço Social e na Soweto Organização Negra.

“O governo é igual feijão, só funciona na pressão”. Esse aforismo, muito usado pelos movimentos sociais em São Paulo, traduz a realidade vivida pelos ativistas populares em busca da conquista de direitos. A pressão gerada por meio da participação social se constitui no principal mecanismo popular de persuasão política. Portanto, entender a participação social como a participação da sociedade em espaços públicos de interlocução com o Estado, é elemento desencadeador de conquistas e avanços sociais ao longo da história do Brasil. 

No campo e na cidade, as manifestações populares por direitos, justiça social e igualdade, fazem parte da vida da população brasileira. Luta pela terra, luta contra o racismo, por direito ao voto, movimento contra a carestia, movimento pela reforma urbana, movimento estudantil, movimento contra a homofobia, movimento pelos direitos da mulher, movimento contra misoginia, movimento LGBTQIA+, movimento atingidos pelas barragens, movimento pelos direitos indígenas, movimento pelos apenados, movimento pela saúde, pela liberdade religiosa, entre outros movimentos. Tudo isso são exemplos de reação, da capacidade de participação, mobilização e organização do povo brasileiro. Cada grupo, cada segmento social, do seu jeito, com sua forma, dão sentido aos problemas que os afetam diretamente e que passam despercebidos ou são naturalizados aos olhos do Estado e da sociedade. 

AS POLÍTICAS DE AÇÕES DE AFIRMATIVAS

Ao analisar o processo de condução da pauta racial, podemos observar os avanços e conquistas do movimento negro ao adentrar as instâncias governamentais, no entanto para muitos autores e lideranças negras, mesmo com as iniciativas governamentais da década de 90, na prática, muito pouco se avançou. Por isso o movimento negro continuou em atuação e chegou ao século XXI preparando-se para participar da III Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul, em setembro de 2001. 

Eventos preparatórios de grande impacto social precederam a Conferência de Durban, tais como a Conferência Nacional, com mais de dois mil participantes, reuniões preparatórias em todos os estados, reuniões internacionais regionais das Américas, reuniões entre movimentos negros de diversos países com a elaboração de documentos reivindicativos. Assim, em decorrência dos desdobramentos das mobilizações, o Brasil assumiu o compromisso efetivo de implementar políticas de Estado de combate ao racismo e de redução das desigualdades raciais, com a adoção de novas iniciativas, foi criado o Conselho Nacional de Combate à Discriminação Racial(CNCD), ligado à Secretaria de Estado de Direitos Humanos, com o objetivo de incentivar a criação de políticas públicas afirmativas e proteger os direitos dos indivíduos e de grupos sociais, raciais e étnicos sujeitos à discriminação racial. (SILVA et al 2009, p.36). 

Alguns ministérios determinaram cotas para negros em cargos direção, na contratação por empresas terceirizadas e organizações de cooperação técnica. As ações afirmativas passaram a ser pensadas no âmbito governamental a partir dos eventos preparatórios da conferência, muitas polêmicas e discussões referentes à política social específica para a população negra surgiram, desvelando a persistência do racismo e a naturalização da condição de inferioridade socioeconômica em que negros e negras encontram-se historicamente. 

A conferência foi iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU), reuniu 16 mil participantes de 173 países. O objetivo de conferências desse porte é discutir temas globais” como assentamentos humanos e a situação da mulher, pautados em conferências anteriores. A Conferência de Durban, como ficou conhecida, foi uma agenda inovadora e seu texto final norteou ações para eliminar desigualdades estruturadas na raça e orientações para a elaboração de políticas públicas contra o racismo. A III Conferência deixou como legado a necessidade de adoção de medidas reparatórias em prol da população negra, não em espécie, mas em políticas afirmativas ou políticas focais que carecem de recursos para atender grupos discriminados. 

Após a Conferência de Durban, diversas medidas foram adotadas pelos governos brasileiros. O Instituto Rio Branco passou a realizar, em 2002, o programa de “bolsa-prêmio para a diplomacia”, voltado para estudantes negros/as. Posteriormente, a Lei nº 12.990/2014, que estabelece reserva de 20% das vagas nos concursos públicos para candidatos/as negros/as, provocou alterações no programa bolsa-prêmio com o aumento da efetividade do programa ofertando apoio aos candidatos/as negros/as bem sucedidos/as na primeira fase do concurso. Desde a implantação do Programa, o Instituto Rio Branco já aprovou 46 bolsistas nos Concursos de Admissão à carreira de Diplomata. Ter negros e negras no corpo diplomático brasileiro é algo inédito na história do país de maioria preta e parda e prova que só com a pressão vinda do movimento negro essa rea – lidade, lentamente, vem se revertendo.

Historicamente, a população negra se fez presente no serviço público, a maioria em funções de nível básico ou médio. Quanto maior são as exigências para determinadas carreiras públicas, por exemplo, carreiras jurídicas: magistratura, promotoria, procuradoria, altas patentes da carreira militar, diminuem as chances de negros/as acessarem em função das desigualdades sociais e econômicas que impossibilitam o preparo adequado para a seleção. As exigências podem ser uma das tantas catracas invisíveis presentes na estrutura da sociedade e que bloqueiam o acesso da população indesejada, os pobres e os negros em determinados lugares. Portanto, a reserva de vagas para negros/as no serviço público em todas as esferas de governo é uma política afirmativa que contribui com o desbloqueio da catraca e a participação um pouco menos desigual nos bens socialmente produzidos. 

Apesar de avanços alcançados com a Lei de Cotas no serviço público, algumas medidas não foram implementadas, por exemplo, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, Decreto nº 4.228 de 2002 e os Programas de Ações Afirmativas nos Ministérios do Desenvolvimento Agrário, da Cultura e da Justiça, reflexo da descontinuidade na execução de políticas públicas a cada troca de governo. 

Na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, outras ações foram implementadas, entre elas a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira na educação, a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) com status de ministério o avanço nos sistemas de informação com notificação e registro de raça e cor, as ações públicas dos movimentos negros para o estímulo à auto declaração racial, a aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a instituição de políticas de ação afirmativa no ensino superior. Seguem breves comentários sobre alguns dos pontos mencionados: 

» Na gestão atual (2022), a Seppir passou a ser denominada Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), perdeu o status de ministério e foi agregada ao Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, perdeu poder, autonomia e recursos para fazer a pauta racial continuar se fortalecendo e incidindo nas esferas do governo e na sociedade. 

» A Lei 10.639/2003 foi substituída pela Lei 11.645/2008, com a inclusão da obrigatoriedade de ensino da cultura indígena e afro-brasileira no currículo oficial de ensino. Reivindicação antiga do movimento negro para evitar visões distorcidas e estereotipadas da população negra, a lei supre esse anseio, resta agora fazer com que a operacionalidade seja amplamente efetiva, o que depende do empenho de alguns fatores, entre eles, a capacitação continuada na temática étnico racial voltada para gestores da educação do país inteiro. 

» Para a formulação de políticas públicas de promoção da igualdade racial é fundamental que o país faça a coleta dos dados sobre a pertença racial nos prontuários, cadastros, fichas, etc. de usuários dos serviços públicos, trabalhadores em geral, estudantes, entre outros, para se ter conhecimento do perfil e distribuição da população na rede de serviços e atendimentos e para se pensar nas políticas públicas específicas. 

» Ao se analisar a linha do tempo dos censos realizados no Brasil, 1872 a 2010, observa-se mudanças nas categorias utilizadas para identificar a pertença racial e também a ausência da coleta do quesito cor em determinados momentos por motivos diversos entre eles. Em 1970, período da ditadura militar que optou-se pela não inclusão da variável, atribuindo à miscigenação a dificuldade em classificar a cor. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) usa as categorias branco, preto, pardo, amarelo e indígena para classificar as pessoas por raça/cor. O IBGE classifica como negros os pretos e pardos. Decisão tomada de acordo com as reivindicações do movimento negro que, ao contrário de muitos estudiosos que questionam as classificações adotadas pelo Instituto, para o movimento, conforme aponta Gabriela dos Anjos em seu estudo “A questão “cor” ou “raça” nos censos nacionais” (2013). Para os militantes do movimento negro, o que se questiona é a existência de uma categoria intermediária entre “branca” e “preta”, que abre aos respondentes a possibilidade de declaração de uma cor mais clara ou “branqueamento” nas respostas (Marx, 1998, p. 163). Ela promoveria uma negação da “negritude” e dificultaria a criação de uma identidade comum entre os “não brancos” (Loveman). 

» As políticas de ação afirmativa no ensino superior abriram chances para estudantes negros e negras de baixa renda ingressarem na universidade pública e seguirem na vida com novas oportunidades e possibilidades de sair da linha de pobreza. A pesquisa “Desigualdades Raciais por Cor ou Raça no Brasil” (IBGE, 2017) demonstra o êxito da política ao divulgar que o número de estudantes pretos e pardos nas universidades e faculdades públicas ultrapassou, pela primeira vez, o de brancos. 

» A Saúde da População Negra é uma pauta demandada pelo movimento negro e por mulheres negras desde a década de 80. A Política Nacional Integral de Saúde da População Negra (PNISPN), Portaria nº 992 de 13/05/2009, articulada ao Sistema Único de Saúde (SUS) tem o objetivo de melhorar as condições de saúde de negros e negras e estabelecer padrões de equidade étnico racial e de gênero na política de saúde do país. Mais uma conquista do movimento negro, em que pese os problemas enfrentados pelo SUS, registrar a existência da PNISPN é um diferencial para a população negra. 

Mobilização, organização e participação são ações realizadas pelo povo negro desde o Brasil colônia nos quilombos, lugares de resistência e luta contra a escravidão, até os dias de hoje. No período pós-abolição, e já adentrando o século XX, a população negra, marginalizada do processo de industrialização do país, dá continuidade à luta racial e elabora uma contra ideologia racial com formas diversas de participação, inserção social e constituição de uma cidadania negra. A imprensa negra, o associativismo cultural, religioso e político, são alguns importantes meios de fortalecimento, preservação da identidade e possibilidade de transformação da condição de subalternidade vivida pelo povo negro. A ida às ruas para sambar, mas também votar, denunciar, reivindicar, protestar e propor formas para eliminar o racismo e todas as formas de opressão em busca de um reordenamento social e racial, onde todas as pessoas vivam com dignidade, tenham qualidade de vida e usufruam com equidade dos bens materiais é a “negrotopia” do movimento negro.

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