1998

Autora: Mira Lopes

Era uma típica tarde de domingo no Jardim Patuá: música alta rolando, crianças nas ruas, carros tomando banho de mangueira, o boteco e suas cervejas. Da laje de casa, Lívia e Djaime observavam tudo. 

– Ficou ajeitadinha a garagem – sala – de– aula da Edileusa, né? Disse Djaime. 

– É que foi o Vânio que construiu, o cara é fera demais. Nossa, a ideia que a Mãe Carmem falou ontem foi demais também, eu achava que participação política era votar nas eleições e só. 

– Eu gosto muito da maneira como ela consegue pegar um acontecimento da favela e transformar numa oportunidade de explicar coisas complexas. Cara, a Edileusa só pediu ajuda para organizar uma sala para dar aula de alfabetização para idosos, era só a galera ir lá, fazer vaquinha para o material de construção, lousa, giz, caderno e tal, organizar o churras e já era. 

– E quando se juntam Mãe Carmem e o Sr. Osvaldo… Aulas! 

– Só de ela já começar falando que iríamos fazer uma ação política, que nós somos seres naturalmente políticos, esse lance todo de viver em comunidade… 

– E quando o Sr. Osvaldo explicou que a nossa democracia é representativa, por isso, a gente elege candidatos, mas que a constituição permite a participação direta do cidadão? Vários olhos arregalados. 

– Aham, até a parte do exemplo da Edileusa, eu estava de boa, mas, confesso que quando ele começou a falar de plebiscitos, conselhos, fóruns, fiquei um pouco confuso. Mas foi bom porque vou procurar pesquisar sobre o tema. Deu-me uma vontade danada de estudar isso.

– Pode crer! Toda aquela história de políticas públicas, sociedade civil organizada, vale ler com calma depois. Acho que era isso mesmo que eles queriam: que a gente se interessasse pelo tema. 

– Sim, o importante mesmo era todo mundo entender que a proposta da Edileusa tá relacionada com rolê social de participação popular e o quanto todos nós temos o direito e também o dever de participar real do jogo, seja em nossa comunidade, bairro, cidade e por aí vai. 

– Até porque se a gente for ficar esperando só pelos políticos, imagina… A ponte aqui só é consertada em época de eleição. Mas, olha só que estranho: ano retrasado fizeram só a ponte de concreto, não fosse o Jairo as escadas estariam direto no barranco ainda, ele que botou os blocos. Cidadão ativo o Jairo, agora sei. 

– E esse tipo de participação acontece direto, é que agora a gente vai nomear diferente porque entendemos que está num contexto político social maior, igual disse Mãe Carmem. O importante, eu acho, é a gente se aproximar mais desses outros lugares de participação coletiva, organizada e tudo mais. A gente buscar ver direitinho quais são as necessidades aqui do bairro. Mãe Carmem disse que a gente consegue até propor projeto de lei, é mais complexo, mas dá. Não é incrível isso?!

– Ó lá, o pai tá fazendo suco de goiaba. Daqui a pouco chega aqui. Ainda bem, calor danado! 

– Prefiro de abacaxi, mas tá valendo. Aliás, a louça do almoço é sua, hein?! 

– Participar mandando é com você mesmo, né? Participa fazendo, bonitão! Cadê você? Limpando o cocô dos cachorros? Acho bom você ir exercitando uma participação ativa e responsável dentro de casa antes de partir para o mundo. 

– Caramba, Lívia! Pega leve. Sorte sua que a mãe foi na vó, senão você não estaria aqui de boa. Mas me diz: você não achou essa ideia de a gente até poder propor projeto de lei, algo interessante? 

– Achei. Inclusive, falei para Mãe Carmem aproveitar o espaço da Edileusa e dá umas aulas de direito e cidadania para gente que é adolescente. 

– Você tem só 14, é adolescentezinha, eu que já sou um adolescente mesmo. 

– Mas tu é besta. A adolescentezinha aqui daqui a pouco tá na sua sala, fica repetindo de ano, mané! 

– Eita, a cara do pai, certeza que fez o suco com água do filtro, deve até estar quente, ele sempre faz isso. Agora o refresco vai demorar mais do que o esperado. 

– Estando pronto na hora do jogo, tá ótimo! 

– Por isso que você tá com essa camisa feia? 

– Ai, Dj, não vou debater com quem não entende nada de basquete… 

– Tá aí uma coisa boa de ter aqui na favela, uma quadra. 

– Nossa, seria um sonho. Quero mais do que nunca essas aulas com o Sr. Osvaldo e Mãe Carmem. 

– Lívia, participação social é uma coisa que não para, né?! Você tá reparando? Quanto mais a gente conversa, mais vontade a gente tem de estar ativo. 

– Eu vou participar tanto que vou virar vereadora, vou virar representante do povo. Já pensou? Sabia que faz 30 anos que uma vereadora negra foi eleita na cidade? Essa eu aprendi na aula de história. 

– Professora Talíria? 

– Ela mesma. 

– Fera! Ihh, a mãe chegou e sua louça tá lá. 

– A vó deve ter ficado muito contente com a ideia de se alfabetizar, você não acha? Eu acho que ela vai aprender bem rápido, porque ela é muito sabida. E, Dj, o pai já lavou a louça. A gente apostou que quem perdesse o primeiro jogo, lavaria a louça do almoço no próximo jogo que é hoje. 

– E quem perder hoje? 

– Chora. HAHAHAHA 

– Bom, vou lá no campinho falar com os meninos para gente tocar um samba na inauguração da garagem. 

– E eu vou falar com a mãe para ela incentivar a vó a tocar viola. 

– Beleza, futura parlamentar. Imagina daqui a 20 anos, Lívia…acho que a gente vai ter avançado bastante, né? 

– Nossa! 20 anos, estaremos em 2018, certeza que o Brasil estará bem melhor.

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