As máquinas e nossos valores | Paulus Editora

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Tecnologia e Pastoral

05/12/2021

As máquinas e nossos valores

Por Ednoel Amorim

No início da humanidade não existia nenhuma máquina sequer, estritamente falando, a menos que alguém queira considerar o corpo humano a máquina perfeita, mas isso é outra história. Com o passar dos anos e com o aperfeiçoamento da inteligência humana e seu modo de ver a realidade, foram surgindo equipamentos, utensílios e diversas formas de tecnologia que servem ao homem para desempenhar o seu trabalho ou as diversas atividades programadas, ou seja, foi o ser humano que com a inteligência dada por Deus criou a tudo aquilo que chamamos de tecnologia, máquinas, processos etc.

Caso você não acredite em Deus, algo que está na moda hoje em dia, não tem prejuízo, ao menos não para essa reflexão, pois, seja de onde for que venha sua inteligência, o que quero chamar a atenção aqui é para o fato de que você, no primeiro instante que sentiu a necessidade de, por exemplo, proteger os pés para percorrer longas distâncias a fim de melhorar seu desempenho, sua segurança, performance ou por outros motivos, você criou uma técnica. Na primeira tentativa do ser humano de utilizar seja o que for para facilitar sua vida ou sua sobrevivência, isso configurava uma empreitada técnica. Se utilizarmos um pouco a imaginação, podemos visualizar um jovem que passa pela primeira vez diante de um coqueiro e fica curioso para alcançar os frutos ali presentes. A utilização de uma arte de madeira para derrubar o coco é precisamente uma invenção técnica. Um simples desejo unido a criatividade proporcionou ao ser humano passar dos mais rudimentares instrumentos aos mais tecnológicos aparelhos da contemporaneidade, dos mais fúteis aos mais úteis.

Para além de toda essa introdução, este texto não quer fazer uma análise da evolução tecnológica, apenas uma apresentação de origem, ou seja, a tecnologia é fruto do engenho humano, da nossa criatividade instigada por necessidades e desejos. Logo, é inevitável que os valores, crenças, pressupostos e tudo aquilo que o ser humano acumulou como experiência esteja presente em suas invenções. Podemos inclusive afirmar que cada invenção supõe uma potencialidade da natureza humana que faz com que o ser humano amplie suas próprias potencialidades. O que é o avião? O fruto direto do desejo do ser humano de voar. O que é um óculos? O fruto da necessidade de corrigir uma deficiência visual ou ainda de um desejo estético. Os exemplos poderiam ser dados aos milhares e sempre iríamos chegar à mesma conclusão: o ser humano está querendo ampliar uma capacidade ou satisfazer um desejo.

Por isso, é inevitável que a tecnologia imite a vida, pois quando criamos colocamos em tudo as nossas características e nossos valores. Basta perceber que quando utilizamos o computador, sempre devemos “salvar” os arquivos. A salvação é um conceito cristão. Antigamente esse processo de salvar os arquivos era feito em mídias como disquete, CD-ROM, pen-drive, hoje, tudo fica na rede, naquilo que se chama Cloud (nuvem). Segundo a tradição católica as nuvens são representação do céu, nada mais lógico para salvar algo que mandar para o céu. Um cristão é alguém que é seguidor de Jesus Cristo, hoje nos tornamos seguidores uns dos outros no Instagram. O amor é o conceito cristão por excelência, quando curtimos uma publicação dos nossos contatos o símbolo utilizado é o coração, tradicionalmente relacionado ao amor.

Na Igreja somos orientados por um princípio de mediação, ou seja, a mediação de Deus e os homens, por meio de Jesus Cristo, assim temos as mídias, que nada mais são que mediações, que nos conectam uns com os outros, criando redes on-line que muitas vezes já existiam na realidade, pois nossas famílias, nossos colegas de escola, de trabalho, todos esses já faziam parte da nossa rede (comunidade). Com o advento das tecnologias digitais elas apenas mudaram de lugar e foram ampliadas, reproduzindo o conceito de comunidade cristã em grandes e pequenos grupos. Poderia continuar buscando e citando outros exemplos, mas o que realmente devemos prestar atenção é para que os valores que nós mesmos colocamos nas máquinas e tecnologias não sejam esquecidos por nós, que não nos desviemos do real sentido de viver conectados, em rede, que é a nossa necessidade de relacionarmo-nos com pessoas reais, dialogar, interagir, trocar experiências, viver…

Toda essa arte (tékhné) sem a palavra (lógos) estaria incompleta. Tudo isso sempre olhando para o céu, pois se tem algo importante que essas novas tecnologias nos lembram, certamente será a nossa vocação para a eternidade.  Elas nos lembram que devemos sempre olhar para as alturas: “Se vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus” (Cl 3,1).

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